Cifra Club

Fotos: Show de Glenn Hughes e seu legado em Porto Alegre

Glenn Hughes viveu – e ainda vive – uma vida de rock’n’roll. Basta olhar para o legado que construiu em quase 50 anos de carreira. Aos 66 anos, o nobre cidadão de Cannok, Staffordshire, cidade localizada nas West Midlands, região centro oeste da Inglaterra, tornou-se um baixista/vocalista/compositor admirado como artista ímpar no gênero. Seja desde os primeiros movimentos como menino prodígio no Trapeze, banda que ajudou a formar com apenas 17 anos, mas principalmente como integrante do Deep Purple entre 1973-76, quando registrou uma digital única nos álbuns “Burn” (1974), “Stormbringer”(1974) e “Come Taste the Band” (1975), e assim, virou um das peças chaves do hard rock naquela década. Após o ocaso do Purple em 1976, forjou parceria com o guitarrista Pat Thrall (Meat Loaf/Asia); passou voando pelo Phenomena; gravou com John Lynn Turner e Yngwie Malmsteen; deixou sua marca no Black Sabbath; tocou com Gary Moore; ao lado de Joe Bonamassa brilhou (e ainda brilha) no Black Country Communion; e na companhia de Jason Bonham (filho do homem!), criou o grupo California Breed. Perceberam os laços de Hughes com a tríade sagrada do hard rock nos anos 1970? (Deep Purple, Black Sabbath e Led Zeppelin). E além de todos os enlaces e projetos, sacolejado por um turbulento espírito leonino – hiperativo – até agora já empilhou catorze álbuns solo distribuídos ao longo das últimas quatro décadas.

Antes de aterrizar em Porto Alegre, Glenn Hughes e banda cruzaram por Dinamarca, França, Chile e Argentina, além de seis cidades brasileiras. O atual show, “Glenn Hughes performs Classic Deep Purple Live”, não passa de uma profunda reimersão num repertório que demarca o ápice artístico do músico inglês. Depois da ruptura do grupo que o tornou uma lenda do rock, por mais que como ex-integrante do Purple nunca deixasse de tocar as composições que ajudou a escrever, essa é a primeira vez que Hughes entra de corpo e alma no repertório que tão bem conhece. E por que não? Lembre-se, a atual formação do Deep Purple passa longe dessas músicas, além de que desde o seu reagrupamento em 1984, cantar músicas que não escreveu enquanto esteve fora do time é algo que certamente nunca passou pela cabeça de Ian Gillan. E se David Coverdale, à frente do Whitesnake, já pagou tributo a história em comum com Glenn Hughes, num álbum de estúdio, noutro ao vivo e ainda em turnê dedicada ao período em que esteve no Deep Purple, nada mais justo que Glenn Hughes também faça o mesmo. Afinal, quantos veteranos atualmente sentem-se habilitados em cantar oitavas sem precedentes no rock? Que vocalistas dos anos 1960/70 continuam a desafiar os limites do tempo com cordas vocais capazes de reprisar no talo músicas que tornaram mítica essa trajetória?

E ainda falando de retornos,  tanto Coverdale, quanto Hughes, protagonistas na MK3 e MK4 (siglas que designam a terceira e quarta encarnação do Purple), optaram por diferentes abordagens ao reler esse capítulo de suas carreiras. Coverdale resolveu reinventar os temas e colocar um carimbo com o selo do Whitesnake. Já Glenn Hughes coloca o pé na porta e dá aos fãs exatamente aquilo eles sempre quiseram ouvir. Ou seja, um translúcido espelhamento de como as ações decorriam ao vivo com o Deep Purple durante os anos finais da bandas na década de 70. Adivinhe quem se deu melhor?

O tour que iniciou no último dia 4, mantém um setlist estável, com 11 e 12 canções distribuídas em cerca de duas horas de apresentação. Antes de Porto Alegre, oito apresentações tiveram o mesmo set. O show mais curto foi em Chauny, na França (apenas 9 temas, sem “Holy Man”, “Sail Away” e “This Time Around”). Depois de 2010/15, em sua terceira passagem pela Capital gaúcha, o ‘comeback special’ de Glenn começa seguindo o protocolo da atual turnê. “Stormbringer”, um tema em que o músico apresenta armas e coloca o pau na mesa: “Vindo do nada / Movendo-se como a chuva / Ao som do trovão, novamente dança o Arauto da Tempestade”. Sim, ele dança, e como! Já nos instantes iniciais, o que Glenn Hughes faz com seu baixo enquanto canta parece sobre-humano. Ele atua como se fosse um super-herói num HQ fictício do rock.

Já em “Might Just Take Your Life”, aos poucos podemos perceber a banda que o acompanha no atual tour. O músico dinamarquês Søren Andersen (guitarra) é o responsável por suceder nesse repertório a dois personagens mitológicos no imaginário de cada fã do Purple: Ritchie Blackmore e Tommy Bolim. “Um veterano jogando dados pelas ruas / De alguma forma, tentando ganhar o pão de cada dia / Estou realmente certo de que as coisas vão melhorar / E estou de prontidão”. Ao final do tema, em alvoroço, o velho Hughes já circula hiperativo por ambos os extremos do palco distribuindo sorrisos e extratos de sua habilidade como instrumentista.

A história em “Sail Away” denota uma banda com sede da estrada. “Mulher de músico é a música”, bordão que pode impulsionar o protesto das feministas, ou um até mesmo tenta justificar um comportamento misógino dos artistas ligados ao rock. Na verdade, apenas explicita uma época de excessos, o olimpo do rock na primeira metade dos anos 1970. Mesmo que sejam de cepas diferentes, a temática de “Sail Away” espelha o que Robert Plant evoca em “Going to California”, quando o vocalista do Led Zeppelin declara sua saudade dos excessos que uma banda se permite na estrada, relembra o encontro com as groupies e saúda com  alegria as longas noites em claro nos quartos de hotel. “Eu navegarei, é hora de dar um giro por aí / Relembre os dias de chuva / Vou desaparecer, pois a noite está chamando meu nome / Você vai ficar em casa, mas eu singrarei para longe”. Num de seus riffs de baixo mais matadores, Hughes parece tão feliz no palco que é impossível esconder esse júbilo, tanto na forma de cantar, quanto na desenvoltura em que empunha seu instrumento. Eis um homem orgulhoso de seu legado.

Logo após fazer o sinal da cruz, Glenn distribui elogios ao Brasil e deságua seu carinho e gratidão: “This man loves Porto Alegre”. Anderson evoca a lembrança de Blackmore em seu solo de introdução repleto de oitavas, e quando puxa o riff de Mistreated”, um dos poderosos hard blues do Purple, em pé, batendo forte nos tons, como se fosse um feiticeiro jogando poções num caldeirão mágico, o baterista Fer Escobedo turbina potencializa ainda mais o que já está inflamado. Eis uma música ímproba de desassociar da imagem de Coverdade. Difícil de imaginar antes dessa performance em Porto Alegre. A inscrição na contracapa do álbum original já nos alerta: “Todos os vocais são interpretados por David Coverdale e Glenn Hughes, exceto ‘Mistreated’, cantada apenas por Coverdale”. Eis então que na versão de “Mistreated” tocada no Opinião podemos ouvir voz de Hughes frequentar uma zona de conforto modulada sob medida para sua garganta, para no refrão estourar valendo em uníssono com a multidão de fãs que lota a casa. “Caminho só, sinto um estranho frio na alma / Eu procuro por alguém / Foi um golpe duro ter perdido minha mulher / Eu ando fora de mim”. E “se a estrada do excesso nos leva a sabedoria”, William Blake e todos nós sabemos que sempre há um preço a pagar por toda essa liberdade.

O rebote chega em “You Fool No One”, uma daquelas peças perfeitas para qualquer boa banda de hard rock pavonear adjetivos. O músico dinamarquês Jesper ‘Jay Boe’ Hansen (teclados), faz um solo/intro buscando corporizar o espólio deixado por Jon Lord. Numa versão de mais de 20 minutos, cheia de idas e vindas, falsos finais e onde  a lembrança da performance do Purple no California Jam (1974) é prontamente associada, Anderson e Escobedo também estrelam longos momentos individuais. “Você pensou que poderia me convencer? / Melhor correr quando me ver chegando”. Talvez esse seja um dos átimos nevrálgicos do show, quando surja mais forte a lembrança de um Deep Purple no palco. Imagine o que era ver Coverdade e Hughes juntos, dividindo vocais e atenção dos fãs? Quando Glenn deixa de atuar como um grupo coeso, ao ressaltar as virtudes individuais de cada elemento, fica fácil entender por que sempre é tão difícil ressuscitar palmo a palmo esse espólio grandioso que tematiza o tour.

“E o tempo passa voando”. Dedicada a Jon Lord, “This Time Around”, maior balada de Hughes no Purple é um tema perfeito para sua voz rock’n’soul. É também uma forte lembrança do tecladista e membro fundador do grupo, co-autor do tema ao lado de Hughes. Na versão original do álbum “Come Taste the Band”, Lord toca todos os instrumentos. Mas é a voz de Glenn que nos conduz ao Everest da composição. Fortuitamente imagino que o recém falecido Charles Bradley poderia tê-la reinventado, assim como fez em “Changes” do Black Sabbath: “Essa forma de cantar veio das minhas primeiras influências da música soul – Tamla Motown e Stevie Wonder, principalmente… Então, a veia rock eu busquei no Cream, Beatles, Jimi Hendrix, para depois novamente beber na música negra, falo de roupagens funk que encontrei em artistas como Sly Stone. Eu sempre combinei rock com soul music”, disse em entrevista exclusiva ao Memorabilia o autor de “This Time Around”.

Outro grande momento está na versão de “Gettin’ Tighter”, extrato do talento de Hughes como um dos melhores vocalistas dos anos 1970, e também ligada à memória de Tommy Bolim, co-autor e guitarrista do Purple morto em 1976. “Ao cair da noite / Já cruzamos dez mil milhas / E a banda vai recomeçar a tocar”. Da mesma forma que na gravação original no lado A de “Come Taste the Band”, o grupo tripudia valendo na parte B instrumental, quando entra em pauta uma breve reprise sombreada por novos ecos da black music, com cruzamentos vocais ao estilo do que Michael Jackson fazia no Jackson Five. A dinâmica da cozinha baixo/bateria é incrível, “Smoke on the Water” não pertence ao legado de Hughes no Deep Purple. Não concerne à primeira vista, afinal, onde há um risco de fumaça, também há fogo! “Fumaça no céu / Fogo na água”. Como retirar do set um dos maiores sucessos do Purple? Na época, seria um tiro no pé deixar de tocar a ponta de lança que abriu as portas do mercado norte-americano. E assim, a versão MK3/4 para a história do incêndio durante o show de Frank Zappa em Montreaux, Suiça, quando o incidente liquida com o local onde o quinteto gravaria “Machine Head”, ganha o enxerto (mash-up) com “Georgia on My Mind”. A canção, escrita pelos compositores norte-americanos Hoagy Carmichael e Stuart Gorrell em 1930, definitivamente está ligada à memória de Ray Charles. Outra vez a genética artística de Glenn Hughes preconiza ares de rock’n’soul. Há também blues no ar: “Não consigo encontrar a paz / Apenas uma velha e doce canção mantém Georgia nos meus pensamentos”. Impossível não ficarmos boquiabertos com o frescor e os malabarismos vocais de Glenn Hughes, cantando com a energia de um jovem de 20 e poucos anos (ele tinha apenas 22 quando foi efetivado no Purple).

 

Nessa altura de sua vida, olhando para o curso do tempo, parece que Glenn continua à procura de algo que ainda não encontrou. Provavelmente, esse retorno ao repertório do Deep Purple seja parte dessa investigação, algo muito pessoal, construído com passos firmes numa profunda intenção de apaziguar velhos fantasmas. E quando o riff do contrabaixo ganha a companhia do chipô de Escobedo, Glenn  sorri com altivez. “You Keep on Moving” não apenas faz o público o ovacioná-lo. Certamente não há música mais indivisível de sua persona artística do que a última faixa do Lado B do derradeiro álbum do Deep Purple nos anos 1970. Certo sabor de final de uma era, e do próprio show que estamos vendo… “Você se prepara para o adeus / Todos os dias, passo a passo, as coisas vão encontrando seu lugar / E assim, a tristeza volta à baila / De todo o modo, a aurora se revela, outro dia renasce / Você me abraça feito um halo em torno do sol / Quando então, cinge as estações rumo ao desconhecido / E desse modo imita o passo dos anjos”. Inesquecível versão em Porto Alegre, e o público canta ainda mais alto: “Fly away… Hughes, Andersen, Jay Boe e Escobedo se movimentam para além dos focos das luzes, saem do palco e nos deixam com aquela sensação de que a pérola ainda não foi revelada.

De volta ao palco, sem o contrabaixo à tiracolo, segurando o microfone em suas mãos, Glenn se detém a relembrar outro clássico de uma era: “Ninguém vai mudar minha cabeça / Estou na estrada outra vez”. Não há dúvida disso, pois “Highway Star” também ressuscita os últimos dias do Purple nos anos setenta. Ouça AQUI a versão da banda tocada ao vivo em Long Beach (1976). “Chupa, Ian Gillian”, grita um fã próximo a mim.

E eis a derradeira pérola. “Burn” é extraída da parte mais nobre do baú das riquezas do Deep Purple. E de uma forma cíclica, já no últimos momentos da apresentação, Glenn Hughes retorna a faixa de abertura do Lado A do primeiro LP da MK3. “Coloquem mais lenha no fogo”. Se em setembro de 2016 Porto Alegre assistiu o Whitesnake de David Coverdale mandando brasa na sua versão de “Burn”, a releitura de “Glenn Hughes performs Classic Deep Purple Live” joga a bruxa na fogueira e liquida com aquela memória opaca e difusa que ouvimos no Pepsi On Stage.

Balanço geral do set: cinco peças de “Burn”, três números de “Come Taste the Band” e mais um tema de “Stormbringer”. A licença poética fica por conta da dupla de ases advinda de “Machine Head”, composições fora do espectro da passagem fonográfica de Hughes pelo Purple, mas inclusas no repertório ao vivo da época em que esteve no grupo. Em sua nona passagem pelo Brasil, podemos afirmar que dificilmente algum show dessa modalidade tire Glenn Hughes Classic Deep Purple Live do topo do pódio dos melhores shows de 2018.

Depois do Opinião, nesse domingo (29) Hughes ainda toca no Circo Voador no Rio (29), e também em Vila Velha no Espírito Santo. No site oficial do músico as datas da turnê seguem até outubto, ou seja, ainda há muitas histórias a serem contadas na estrada. Os shows estão sendo gravados (incluindo as apresentações no Brasil) para o lançamento de um documentário. Caso você não tenha visto de perto Glenn Hughes Performs Classic Deep Purple Live, um futuro DVD passa a ser um atenuante – imaginando o lugar do leitor desse review que não pôde assisti-lo ao vivo no país. Agora, se assim como eu, você estava presente em alguma das apresentações, aí é outra história. Comemore, afinal todos somos testemunhas desse espetáculo histórico que passou pelo RS.

Glenn Hughes performs Classic deep Purple Live – Setlist Porto Alegre;
Stormbringer
Might Just Take Your Life
Sail Away
Mistreated
You Fool No One
This Time Around
Gettin’ Tighter
Smoke on the Water / Georgia on My Mind
You Keep on Moving
Bis:
Burn
Highway Star
Nossos agradecimentos a Homero Pivotto Jr (Abstratti Produtora) pelo suporte, profissionalismo e credenciamento.

Texto: Márcio Grings 

Foto de Ton Müller

Ton Müller

Fotógrafo

Leia também

Ver mais posts

Cifra Club Pro

Aproveite o Cifra Club com benefícios exclusivos e sem anúncios
Cifra Club Pro
Aproveite o Cifra Club com benefícios exclusivos e sem anúncios
OK